“A menor distância entre o mal e o sensacional” por Valmir Santos

 

A menor distância entre o mal e o sensacional

por Valmir Santos

 

A dramaturgia e a direção de “Índice 22” emanam movimentos ambíguos ou, quem sabe, complementares, como o pulmão em sua sina vital de expandir e contrair o ar. Max Reinert assina e opera essas tarefas como arte total, à medida que também concebe a cenografia e a iluminação para o solo de Denise da Luz, da Téspis Cia. de Teatro, cuja qualidade de presença em cena demarca um lugar de coautoria no resultado do trabalho.
 
O texto cria interseções surpreendentes com um conto do historiador e antropólogo potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), “A menina enterrada viva”, publicado em “Contos tradicionais do Brasil” (1946), na sessão “Natureza denunciante”.
 
Referência na pesquisa e recuperação da oralidade das lendas, o folclorista Cascudo narra a história da criança assassinada pela madrasta. O pai fica triste, é enganado de que ela fugira de casa, até o dia em que contrata um homem para capinar o terreiro e este ouve a voz da menina vinda do chão, entoando uma cantiga.
 
O conto está publicado no programa de mediação do espetáculo com o público – uma boa sacada para a experiência de navegar por zonas como que criptografadas do projeto, a começar pelo título, cuja chave estranhamente não é compartilhada.
 
Foi preciso consultar um buscador online para saber que, inferimos, “Índice 22” remete ao teto da escala proposta nos anos 1990 pelo psiquiatra estadunidense Michael Stone, após longo estudo acerca da personalidade de criminosos. Para classificar comportamentos brutais que nem a medicina nem a psicologia explicavam a fundo, ele propôs uma gradação que vai do índice 1 (pessoas que matam em legítima defesa e não apresentam sinais de psicopatia, por isso são consideradas normais) ao índice 22 (psicopatas assassinos fixados em torturar as vítimas com motivação de cunho sexual). A peça toca no quanto o aparente prazer sofrido por uma vítima chama a atenção do mercado de cliques.
 
Ao interlocutor do espetáculo não é dada margem para interpretar, essa tentação de agarrar-se a unidades de tempo e espaço. Não há “era uma vez” no fluxo de consciência dessa voz por meio da qual os criadores ambicionam discutir sobre como a internet amplifica a banalidade do mal no século XXI, para lembrar da responsabilidade individual que a filósofa Hannah Arendt problematizou no modo como o nazismo foi engendrado na Europa.
 
Denise e Reinert excitam o imaginário da plateia com outras possibilidades de significação que não apenas pela via do verbo. A peça é labiríntica feito uma incursão anatômica pelas cavidades do organismo humano. O corpo é pungido por quem é torturado e abduzido pelo seu algoz. Já o que baila pela cabeça são pensamentos perturbadores ou capazes de produzir verdadeiras sinapses.
 
A perversão espelhada no conto popular materializa-se numa dramaturgia cirúrgica, propulsora de poética a seco no modo de processar dados da realidade à luz da virtualidade da vida contemporânea. A escrita trava embate com a permissividade no território da web, combinando cenários do noticiário com subjetividades do desejo e do ódio.

 

foto by Lenon Cesar

 

No início, o discurso fragmentado soa mais apoiado na corporeidade. Denise faz as vezes de caixa de ressonância das incertezas do que passou ou está por vir. O gesto ecoa e as falas permitem vislumbrar um elemento de psicoacústica (na frequência e amplitude), em consonância com a paisagem sonora e a expressão física. Sensorialidade introdutória dos estados performativos que vão se adensando até o fim.
Apesar da partitura sólida, a constante temática de “Índice 22” é a instabilidade. As frases sobrepostas na projeção que atravessa o corpo de Denise transmitem saturação. Textura que remete à imagem de Isabelle Huppert estática e transpassada por raios de números e palavras em “4.48 Psychose”, da inglesa Sarah Kane, dirigida pelo francês Claude Régy e apresentada no Brasil em 2003.
 
Na montagem da Téspis há momentos vertiginosos que se aproximam da realidade em 3D pela cintilação no desenho de luz. É quando se intensificam ares de miscelânea ou de “mash up”, a mistura musical de faixas instrumentais ou vocais muito comum nas mãos de DJ. Em vez da multidão na pista, temos a vocalização de um ser para tanto mal-estar.
 
Quando a atmosfera turva atenua, a transmissão de uma “live”, na qual a fala chega mais compassada e predisposta a ser ouvida, o espectador haverá de reestabelecer as bases com a atuante em seu domínio técnico-corporal para desvencilhar-se do emaranhado que a encenação a enreda.
 
O tempo real da transmissão e o crescimento de “likes” na proporção da camada de dramaticidade daquele instante configuram os mecanismos de apelo às premissas espetaculares da audiência na internet. O sensorial confunde-se com o sensacional. E assim o movimento oscilatório da obra e seu questionamento crítico sobre as relações tão fluídas quanto brutais assentam-se nessa conversa franca com a tradição do relato de caráter maravilhoso e o desespero que bate quando se vê o futuro de perto, cínico.
 
***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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